Microconto

Distração

Apenas uma freada, corpos se debatendo. Cega de um dos olhos, a menina soluçava. Dor embaçada. Um grito fora da janela. Janice esperou aquela viagem, seu presente de aniversário. O padrinho prometera, os pais lhe fizeram companhia. Carregava o ursinho de pelúcia quando sentiu vontade de ir ao banheiro. Não deu tempo. De repente, o que era teto ficou na sola do pé. O corredor empilhava rostos conhecidos. Alguém cantava e a morte veio distraidamente. Esperou tanto por aquele dia, quis ver as grutas e a imagem da santa. Santa Luzia não passou por aqui, pensou com a dor que chegava. A mãe costumava recitar o poema quando seus olhos inchavam. Agora cadê o colo dela, o ombro do pai? Tantos murmúrios chegavam e o barulho da ambulância soava ao longe. Sentiu coisinhas vermelhas no rosto infante, mas era a alma que sangrava. Lembrou dos muitos braços que a arrancaram dali. Pensou ter visto asas nos abraços daqueles homens. Pediram que ela respirasse, o peito inexistia. Um deles tirou suas meias. Agora, órfã, já adulta, as meias-vontades lhe calçam a memória.

Comentários

  1. Este microconto é impressionante, poucos textos me passaram tanta emoção. Já admiro muito seu trabalho. Desejo tudo de melhor em sua carreira.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Não esqueça de registrar sua visita, deixe seu comentário!